Pedaços de Alcongosta

Instantâneos da Terra da Cereja


A fadista fundanense Celeste Rebordão Rodrigues, 91 anos, irmã de Amália, em entrevista a Anabela Mota Ribeiro, no Público, recorda alguns episódios da infância na terra natal. 

Começamos, muito lá atrás, pelas canções que cantava quando descascava ervilhas?
Cantava canções da Beira que a minha mãe me ensinava, Milho Grosso. E tudo o que ouvia aos ceguinhos na rua. 

Que tipo de coisas cantavam os ceguinhos?Fado. Foi aí que ouvi fado pela primeira vez. Com alguém a tocar acordeão ou guitarra ou concertina. Tinha sete ou oito anos. E ouvia nas grafonolas. Antigamente, havia a coisa dos piqueniques. Em vez de jantarmos em casa, armávamos tudo e íamos para o campo. Estava sempre alguém com grafonola. Nós não tínhamos. 

Isso ainda no Fundão ou já em Lisboa? Cá, em Lisboa. Vim com cinco anos. 

Ainda se lembra de episódios do Fundão?  Só me lembro de quando fui numa procissão vestida de anjo. Eu achava o vestido lindo!, branco com asas. Contava a minha mãe que a cada pessoa que eu encontrava dizia: “Olha aqui o meu vestido tão lindo!” E na igreja, tinha amêndoas no colo, levantei-me e as amêndoas caíram por ali abaixo. 

É uma imagem feliz, a que associa ao Fundão. Muito feliz. Outra imagem: a de o meu pai a tocar na banda, a dar a volta à cidade. E, numa noite de calor, a minha mãe pegou nos filhos e fomos dormir para o alpendre da igreja. Uma aventura. Eram sete na altura. 

Conte-me a história da família, que não a sei. Morreram crianças?   A minha mãe teve cinco rapazes e depois cinco raparigas. Um rapaz morreu à nascença, outro morreu com 18 meses e outro com dois anos e meio. E morreu uma rapariga aos seis anos e outra aos 16. Portanto, ficámos cinco. 

Era um tempo de alta mortalidade infantil.  E sem saber porquê. “O teu irmão morreu com ataques.” Sei lá que é isso de ataques. 

Como é que isso era vivido na família? Era menos traumático, apesar de tudo, do que é hoje? Não. Era muito. Eu deixei de ser religiosa por causa da morte da minha irmã. Ela tinha seis, eu tinha nove. Estava a pedir por ela, na igreja, quando o meu irmão veio ter comigo e me disse que ela tinha morrido. Nunca mais acreditei em nada. Deus, Pai Natal, acabou aí. Tenho impressão de que era mais violento do que agora, porque éramos mais unidos. Também não tínhamos mais nada — a não ser uns aos outros. 

Como é que se chamava essa sua irmã? Maria dos Anjos. Nome horroroso. A minha mãe pôs nomes feios às filhas. Maria Odete, Amália, Celeste, Ana e Maria Rosário. Ah, não era Maria dos Anjos, era Maria do Rosário.

É um lapso bonito. Fazendo dela um anjo.  Os rapazes tinham nomes bonitos. A Ana morreu com 16 anos. Era poetisa, escrevia. 

É impressionante imaginar uma menina de nove anos que tem essa revolta contra Deus quando sabe da morte da irmã.  É. Nós gostávamos muito uns dos outros. Devemos isso à minha mãe e ao meu pai. 

Como é que era a sua mãe? Uma pessoa fantástica. Tinha uma filosofia muito engraçada. Nunca se deixava abater. Quando tinha dinheiro, comprava-nos queijo. Nós gostávamos muito de queijo, queijo fresco. Dava um quarto a cada um dos filhos. A minha avó dizia: “És desgovernada. Deves dar um bocadinho hoje, um bocadinho amanhã.” A minha mãe respondia: “Não, não. Ao menos hoje consolam-se.”  

A família era pobre. Quão pobre? Tínhamos carinho. A pobreza: nem dávamos por isso. A minha mãe ia ao campo, buscar qualquer coisa para fazer uma refeição, espargos, míscaros. Aquela fome, fome, fome, nunca passámos. Podíamos não ter os bifes, essas coisas de que as pessoas precisam, também. Mas não dávamos por essa necessidade. Só havia uma coisa com que a minha mãe sofria: como tínhamos uma casa pequena [no Fundão], quando nascia um bebé, um de nós tinha de ir para casa de um familiar. 

Como era a casa? Era sobreloja, primeiro andar e sótão. Deitaram-na abaixo, infelizmente. Cada vez que ia ao Fundão, ia ver a minha casinha! [Riso] Foi onde nasci. “Se me sair a sorte grande, compro esta casa.” 

Até que idade sonhou com essa casa? Até agora, que fui lá há pouco tempo. Tive um desgosto. Estava habituada a ver a minha casinha, tão linda.

Nunca mais entrou nela? Não. Via-a por fora e já era muito bom. 

De certeza que nunca teve oportunidade, estes anos todos, de comprar a casa? Não! Nem para comprar uma caixa de fósforos, quase. Não sou como o Tio Patinhas. Nunca liguei ao dinheiro: tenho, gasto. E nunca fui de me preocupar com o dia de amanhã. Como sou muito positiva, penso que amanhã tenho um contrato. Hoje não tenho, amanhã tenho — a minha vida foi sempre assim.

Quis verdadeiramente comprar a casa ou bastava-lhe o sonho da casa? Quis. Era como voltar à minha infância.

A sua infância foi feliz por causa do amor que sentiu? Acho que sim.Veja a letra que a minha irmã [Amália] fez: “Não temos fome, mãe, já não sabemos sonhar, já andamos a enganar o desejo de morrer.” Doeu na carne [a privação]? Doeu nada. Dá mais poesia. A pessoa cresce mais depressa. 

Foi uma infância sem medos? A nossa sociedade está muito marcada pelo medoNós brincávamos na rua. Sem medo que nos roubassem os filhos. Tem-se mais sonho quando há dificuldades. “Vou juntar para isto.”

Os sonhos eram? Coisas que a gente gostava de fazer. Viajar. Trabalhávamos no Cais da Rocha e víamos os paquetes, com os passageiros todos. 

Está a falar do que o dinheiro podia comprar. Agora, aos 91 anos, sonha com quê? Oh, tanta coisa! Estou muito agarrada à vida. Mas não me amargura não fazer [tudo o que tenho vontade de fazer]. Já tenho tanta coisa boa... Abrir os olhos e ver esta beleza. 

Essa infância maravilhosa teve sempre a música. O meu pai era músico, tocava muito bem. Trompete, saxofone, clarinete. A minha mãe cantava. Como é que uma pessoa podia estar frustrada? A música enche a vida de beleza. 

A voz da sua mãe, como é que era? Um bocado como a da minha irmã, mais forte. Tinha uns agudos maravilhosos, uns graves sensacionais. 

Havia na sua mãe o desejo de ser cantora? Não. Tinha tanto filho... Pertencia a um rancho e cantava. Chamavam-lhe o “rouxinol da Beira”! Tinha uma voz que se ouvia a dois quilómetros. Nem nós. Nunca sonhámos ser artistas. Nem eu nem a Amália. A gente cantava porque gostava de cantar. Cantávamos nas [festas] dos vizinhos, nos baptizados, nos casamentos da vizinhança. Isto surgiu, primeiro com a minha irmã, porque se enamorou de um guitarrista. E eu porque andava com ela, acompanhava-a. Ainda hoje gosto de cantar. Ando sempre lalalala, por casa.

(...)Como é que era um Natal na vossa casa? Ah. Tudo sentado no chão, que éramos muitos e não havia cadeiras nem bancos. Se cantávamos? Claro! Sempre as coisas da Beira. Os martírios — como é que lhe hei-de explicar o que são os martírios? É uma coisa que se canta na Semana Santa. Eu cantei, como se fosse uma oração, para um filme de pescadores bacalhoeiros da National Geographic. Faz arrepiar quando as pessoas cantam bem. (...) 

Ver entrevista completa em Público.


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